quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Xingando mulher porca

Xingando mulher porca

Vangelder era um senhor dos seus setenta e cinco anos, era engenheiro mecânico e trabalhava numa grande empresa no sul do Brasil. Era metódico, tinha explicação pra tudo, e tinha um senso apurado de civilidade. Era bélgico e tinha vindo para o Brasil no início dos anos oitenta, com seus 45 anos. Mudança trágica que ele enfrentou por sua mulher Marcília, gaúcha que ele conheceu na Alemanha e se apaixonou. Ele disse à ela depois de muita aporrinhação: Ou vamos para o Brasil agora, ou nunca mais! Eles foram. Casou tarde, pois entendia que casamento era pra vida toda. Então antes de casar, vivenciou muitas coisas, morou em outros países, morou dentro de um veleiro por 7 anos, teve várias namoradas e assim casou-se sem se arrepender, muito. Casou com 42 anos, mas poderia ter enrolado até uns 45, disse ele uma vez aos amigos de seu único filho.
No Brasil, Vangelder enfrentou a crise eterna de ser latino-americano. Não era, mas teve que viver como um. Pegou a fase final da ditadura militar, corcéis, fuscas e kombis enchiam as ruas brasileiras. A inflação era absurda, havia muita pobreza e fome, e os políticos eram blindados contra qualquer tipo de ataque do povo. As pessoas não estavam acostumadas com liberdade, com educação livre, com a consciência de coletividade urbana. Furava-se sinal de trânsito, não usava-se cinto de segurança, era comum pagar propina para policiais rodoviários e não rodoviários, entre outros atrasos que para Vangelder lhe causavam indignação e até uma vontade de ser justiceiro. É aí que começa nossa história.
Era meados de outubro e no Rio Grande do Sul pairava o frio. Aquele inverno tinha sido intenso, a água congelava nos encanamentos e quando abria-se a torneira, não vinha nada. Para aquecer o motor do Corcel 1973 era preciso liga-lo uma hora antes, no mínimo, e agasalha-lo com uma coberta como à uma criança. Vangelder como de costume acordou cedo e foi para o trabalho, lá encontrou seus colegas, e enquanto faziam um projeto de um silo para uma fazenda de soja, um deles começou a falar do trânsito caótico que havia em Porto Alegre e da falta de respeito com a lei de trânsito por parte das pessoas: Desse jeito vamos terminar como animais numa selva, onde só o mais forte sobrevive! Vangelder aproveitou o ensejo e encheu a boca pra falar da Bélgica, de como havia um senso apurado de civilidade, onde se faziam leis para serem seguidas, onde a pessoa podia sair de casa e deixar sua porta aberta. Todos concordaram com ele e lamentaram o Brasil estar tão aquém dessa evolução de pensamento coletivo.
Veio a hora do almoço e Vangelder partiu para seu restaurante de costume. Não era seu preferido, mas tinha um bom buffet, variado e saudável, e como ele bem sabia, l'homme est ce qu'il mange, e assim ele caminhava já imaginando seu déjeuner.
Quando o nosso gringo estava chegando em seu destino, viu uma cena deplorável: uma senhora de seus cinquenta anos que já deveria ter vergonha na cara, joga a embalagem de seu lindo bombom na calçada, sendo que havia uma lixeira à 10 metros dali. Vangelder se indignou, e contendo a emoção, disse em português carregado de sotaque: Senhora, senhora! A senhora deixou cair um papel no chão! A mocreia com ar de desdém olhou para aquele senhor europeu e disse: Não caiu não, foi eu que joguei mesmo! Ah! Aí Vangelder não se aguentou, com os olhos arregalados e vermelhos, com o corpo todo tremendo de raiva e com toda a força de seus pulmões gritou em alto e bom som: Prostituta, prostituta, prostituta!
Esse ato de selvageria, de justiça com as próprias mãos, de lição de moral, lhe bastou, e com sensação de trabalho feito, foi almoçar, sabendo no fundo que era um professor das ruas.

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