Gilberto Freyre foi um grande sociólogo brasileiro, foi
professor universitário e acima de tudo um grande pesquisador da cultura
brasileira, do povo brasileiro, de sua miscigenação, da sua gastronomia. Lançou
“Casa Grande e Senzala” na década de 1930, e com isso traz reflexões com a
percepção da época. O autor revela muitos dados e documentos antigos que nos
mostram como éramos (e em muito, continuamos a ser) em nosso comportamento e
cultura nacional.
“Casa Grande e Senzala” revela a nossa raiz cultural, como se
estruturou a organização social, econômica e a política em nosso país. Revela a
nossa dívida histórica para com os povos oprimidos; tanto os indígenas , donos
das terras invadidas que resistiram e foram aniquilados, quanto os negros, que
foram tirados de sua terra para viver na escravidão.
Nesse livro, Gilberto mostra de forma até hilária nossos
antigos costumes, escancara a cultura brasileira, sem esconder nossa tendência
ao desbunde. Criamos um modelo capitalista parecido com a Europa, porém menos
racional. E é perceptível até nos tempos atuais que o modelo parece “apertado
em nossos corpos”. Somos um povo livre por natureza, cheio de vida e
emoção e merecemos um modelo de
civilização que respeite nosso povo e cultura.
Além de gênio, Gilberto Freyre é também um homem de seu
tempo. Com um olhar crítico é possível absorver da obra muito conhecimento
dessa nossa cultura brasileira tão vasta.
Buscando salientar os principais tópicos, segue um breve fichamento
do livro:
“Faltou-me quem me dissesse então, como em 1929
Roquette-Pinto aos arianistas do Congresso Brasileiro de Eugenia, que não eram
simplesmente mulatos ou cafuzos os indivíduos que eu julgava representarem o
Brasil, mas cafuzos e mulatos doentes.”
“Boas salienta o fato de que nas classes de condições
econômicas desfavoráveis da vida os indivíduos desenvolverem-se lentamente,
apresentando estatura baixa, em comparação com a das classes ricas. Entre as
classes pobres encontra-se uma estatura baixa aparentemente hereditária, que,
entretanto, parece suscetível de modificar-se, uma vez modificadas as condições
de vida econômica. Encontram-se – diz Boas – proporções do corpo determinadas
por ocupações, e aparentemente transmitidas de pai a filho, no caso do filho
seguir a mesma ocupação que o pai.”
“Na Rússia, devido à fome de 1921 e 1922 – resultado não só
da má organização das primeiras administrações soviéticas como do bloqueio da
nova república pelos governos capitalistas – verificou-se considerável
diminuição na estatura da população.”
“Refutando a teoria de Oliveira Viana – a inexistência da
luta de classes na formação social do Brasil – lembra Astrojildo Pereira as
guerras, os conflitos dos ‘senhores’ com os indígenas e com os negros fugidos
(quilombolas) e da própria burguesia nascente com a aristocracia rural já
estratificada. Também os conflitos dos representantes da Coroa, quando
fortalecidos pelas descobertas das minas, com os caudilhos rurais. Estes,
embora atravessando crises e sofrendo depressões de poderio, foram a força
preponderante.”
“A índia e a negra-mina a princípio, depois a mulata, a
cabrocha, a quadrarona, a oitavona, tornando-se caseiras, concubinas e até
esposas legítimas dos senhores brancos, agiram poderosamente no sentido de
democratização social no Brasil.”
“Salientam-se entre as conseqüências da hiponutrição a
diminuição da estatura, do peso e do perímetro torácico; deformações
esqueléticas; descalcificação dos dentes, insuficiências tiróidea, hipofisaria
e gonadial provocadoras da velhice prematura, fertilidade em geral pobre,
apatia, não raro infecundidade. Exatamente os traços de vida estéril e de
físico inferior que geralmente se associam às sub-raças; ao sangue maldito das
chamadas ‘raças inferiores’.”
“... o costume dos conventos medievais de tocar-se um sino à
hora da comida: ‘serve elle para avisar o viajante vagando pelo campo, ou o
desvalido da visinhança, que pode chegar à mesa do dono que está se
apromptando; e, com effeito, assenta-se quem quer a essa mesa de hospitalidade.
Nunca o dono repelle a ninguém, nem sequer pergunta-se-lhe quem he...”
“Também em Minas. Na tapera de Samangolê, Município de
Paracatu, havia até há pouco um baile de noite de São João concorrido por gente
de toda parte, que vinha em seges e cadeirinhas, escoltadas de pajens, etc. As
orquestras tocavam a noite inteira. Mas ao amanhecer, tudo tinha desaparecido.
Ultimamente esse mal assombrado se desencantou. Entre as mais famosas casas
velhas mal-assombradas do Brasil está a do Padre Correia (Petrópolis) onde
“conta-se que a alma dos veneráveis Correias por ali erravam à noite
protestando contra o abandono da propriedade.”
“Aliás, em matéria de domesticação patriarcal de animais,
d´Assier observou exemplo ainda mais expressivo: macacos tomando a bênção aos
muleques do mesmo modo que estes aos negros velhos e os negros velhos aos
senhores brancos. A hierarquia das casas-grandes estendendo-se aos papagaios e
aos macacos.”
“O chão de todas as habitações e officinas deve ser
levantado acima do terreno visinho: huma mistura de barro, tubatinga, área e
bosta de boi applicada e soccada torna-se quase tão dura como ladrilho e serve
bem para argamassar tanto os terreiros como os pavimentos.”
“A história social da casa-grande é a história íntima de
quase todo brasileiro: de as vida doméstica, conjugal, sob o patriarcalismo
escravocrata e polígamo; da sua vida de menino; do seu cristianismo reduzido à
religião de família e influenciado pelas crendices da senzala.”
“... uma procissão de negros de Guiné em Pernambuco,
organizados em confraria do Rosário, todos muito em ordem ‘uns traz outros com
as mãos sempre alevantadas, dizendo todos: Ora pro nobis’.”
“Anchieta lamenta nos nativos, o que Camões já lamentara nos
portugueses – ‘a falta de engenhos’, isto é, de inteligência, acrescida do fato
de não estudarem com cuidado e de tudo se levar em festas, cantar e folgar;
salientando ainda a abundância dos doces e regalos, laranjada, aboborada,
marmelada, etc., feitos de açúcar.”
“Com relação ao Brasil, que o diga o ditado: ‘Branca para
casar, mulata para f...., negra para trabalhar’.”
“Tais uniões devem ter agido como ‘verdadeiro processo de
seleção sexual’, dada liberdade que tinha o europeu de escolher mulher dentre
dezenas de índias. De semelhante intercurso sexual só podem ter resultado bons
animais, ainda que maus cristãos ou mesmo más pessoas.”
“Através de certas épocas coloniais observou-se a pratica de
ir um frade a bordo de todo navio que chegasse a porto brasileiro, a fim de
examinar a consciência, a fé, a religião do adventício. O que barrava então o
imigrante era a heterodoxia; a mancha de herege na alma e não a mongólica no
corpo. Do que se fazia questão era da saúde religiosa: a sífilis, a bouba, a
bexiga, a lepra entraram livremente trazidas por europeus e negros de várias
procedências.”
“... o Catolicismo
foi realmente o cimento da nossa unidade.”
“A fuga das mulheres era mais difícil; de sorte que o rapto
das índias foi largamente praticado pelos pretos quilombolas.”
O filho do senhor de engenho contraía sífilis quase
brincando entre negras e mulatas ao perder a virgindade com doze ou treze anos.
O brasileiro ostentava a marca de sífilis como quem ostentava uma ferida de
guerra.
“Degradados, cristãos-novos, traficantes normandos de
madeira de tinta que aqui ficavam, deixados pelos seus para irem se
acamaradando com os indígenas; e que acabavam muitas vezes tomando gosto pela
vida desregrada no meio de mulher fácil e à sombra de cajueiros e araçazeiros.”
“Não convém, entretanto, esquecer-se o sadismo da mulher,
quando grande senhora, sobre os escravos, principalmente sobre as mulatas; com
relação a estas, por ciúme ou inveja sexual.”
“À cultura do litoral atlântico – aquela com que primeiro se
puseram em contato os europeus no Brasil – devem-se acrescentar os seguintes
traços: o hábito de fumar tabaco em cachimbo; as aldeias cercadas de
pau-a-pique; bons instrumentos de pedra; em vez do simples enterramento, os
mortos colocados em urnas. Ao mesmo tempo que à cultura dos Jê-Botocudo ou
Tapuia do Centro há que subtrair vários dos traços mencionados: o pouco de
lavoura e tecelagem, o começo da astrologia encontrados entre tribos do norte e
da costa, o fabrico e uso de instrumentos de pedra, o uso de rede para dormir.
Acentua-se na cultura dos Jê-Botocudo traços que, segundo Wissler, os aproximam
dos Patagônios, colocando-os em estádio inferior ao dos Tupi. Entre outros, o
canibalismo.”
“... a presença de ‘algumas aves domesticadas como os
jacamins; de roedores, tais como a cutia e a paca; e de alguns macacos.’ É
verdade que nenhum desses animais a serviço domestico nem empregado no
transporte de fardos, todo ele feito penosamente ao dorso do homem e
principalmente da mulher.” Entre os
indígenas era quase somente pela companhia.
“Karsten encontrou entre os Jibaro o mito de ter havido
época em que os animais falaram e agiram do mesmo modo que os homens. E ainda
hoje – acrescenta – ‘o índio não faz distinção definida entre o homem e o
animal. Acredita que todos os animais possuem alma, em essência da mesma
qualidade que a do ser humano; que intelectual e moralmente seu nível seja o
mesmo que o do homem’.”
“... a mulher não se agastava com o fato de o homem, seu
companheiro, tomar outra ou outras mulheres.”
“... a elegante rainha Margarida de Navarra passava uma
semana inteira sem lavar as mãos;”
“... advertia os jovens da nobreza a não assoarem o nariz à mesa com a mão que estivesse
segurando o pedaço de carne; que em 1530 Erasmo considerava decente assoar-se a
pessoa a dedo, uma vez que esfregasse imediatamente com a sola d sapato o
catarro que caísse no chão;”
“Dos indígenas parece ter ficado no brasileiro rural ou
semi-rural o hábito de defecar longe de casa; em geral no meio de touça de
bananeiras perto do rio. E de manhã, antes do banho.”
“O mesmo pesquisador foi encontrar entre os Pueblos uma dança destinada especialmente a
fazer medo aos meninos e incutir-lhes sentimentos de obediência e respeito aos
mais velhos. Os personagens da dança eram uns como papões ou terríveis figuras
de outro mundo, descidos a este para devorar ou arrebatar meninos maus.
Stevenson informa-nos de dança semelhante entre os Zuñi, esta macabra,
terminando na morte de uma criança, escolhida dentre as de pior comportamento
da tribo: mas realizando-se com intervalos de longos anos. O fim, o moral, o
pedagógico, de influir pelo medo ou pelo exemplo do castigo tremendo sobre a
conduta do menino.”
Silvanus era o espírito mau da floresta.
“E entre os índios Gaulala, da California, Powers foi
encontrar danças do diabo, que comparou às haberfeld treiber da Bavária –
instituição para amedrontar as mulheres e as crianças e conservá-las em ordem.”
“Danças semelhantes de ‘diabo’ – ou Jurupari – havia entre
os indígenas do Brasil; e com o mesmo fim de amedrontar as mulheres e as
crianças e conservá-las em boa ordem.”
“Por uma espécie de memória social, como que herdada, o
brasileiro, sobretudo na infância, quando mais instintivo e menos
intelectualizado pela educação européia, se sente estranhamente próximo da
floresta viva, cheia de animais e monstros, que conhece pelos nomes indígenas
e, em grande parte, através das experiências e superstições dos índios.”
“Às vezes os padres procuraram, ou conseguiram, afastar os
meninos da cultura nativa, tornando-a ridícula aos seus olhos de catecúmenos:
como no caso do feiticeiro referido por Montoya. Conseguiram os missionários
que um velho feiticeiro, figura grotesca e troncha, dançasse na presença da
meninada: foi um sucesso. Os meninos acharam-no ridículo e perderam o antigo
respeito ao bruxo, que daí em diante teve de contentar-se em servir de
cozinheiro dos padres.”
“Criminoso ou escravo fugido que se apadrinhasse com senhor
de engenho livrava-se na certa das iras da justiça ou da polícia. Mesmo que
passasse preso diante da casa grande bastava gritar: - ‘Valha-me, seu Coronel Fulano.’ E
agarrar-se à porteira ou a um dos moirões da cerca. Da mesma maneira que
outrora, em Portugal, refugiando-se o criminoso à sombra das igrejas, escapava
ao rigor da justiça Del-Rei.”
O Brasil, no início da colonização era somente pau-de-tinta
e almas para Jesus Cristo.
“Deixemo-nos de lirismo com relação ao índio. De opô-lo ao
português como igual contra igual. Sua substituição pelo negro – mais uma vez
acentuemos – não se deu pelos motivos de ordem moral que os indianófilos tanto
se deliciam em alegar: sua altivez diante do colonizador luso em contraste com
a passividade do negro. O índio, precisamente pela inferioridade de condições
de cultura – a nômade, apenas tocadas pelas primeiras e vagas tendências para a
estabilização agrícola – é que falhou no trabalho sedentário. O africano
executou-o com decidida vantagem sobre o índio principalmente por vir de
condições de cultura superiores. Cultura já francamente agrícola. Não foi
questão de altivez nem de passividade moral.”
“Cantavam e dançavam as freiras com tal algazarra que o
viajante chegou a acreditar que estivessem possuídas de algum espírito
zombeteiro. Depois do que representaram uma comédia de amor.”
“Mas outros característicos pagãos do culto de São Gonçalo
conservam-se em Portugal. Entre outros, as enfiadas de rosários fálicos
fabricados de massa doce e vendidos e ‘apregoados em calão fescenino’ – informa
Luís Chaves – pelas doceiras à porta das igrejas. E já nos referimos ao costume
das mulheres estéreis de se friccionarem ‘ desnudadas’, pelas pernas da imagem
jacente do Bem-Aventurado, enquanto os crentes rezam baixinho e não erguem os
olhos para o que não devem ver.’ A fricção sexual dos tempos pagãos acomodada a
formas católicas.”
“A maior delícia do brasileiro é conversar safadeza.”
“Um elemento de colonização portuguesa do Brasil,
aparentemente puro, mas na verdade corruptor, foram os meninos órfãos trazidos
pelos jesuítas para seus colégios. Informa Monteiro que nos ‘livros nefando são
citados com relativa freqüência’.”
“ A freqüência da feitiçaria e da magia sexual entre nós é
outro traço que passa por ser de origem exclusivamente africana. Entretanto o
primeiro volume de documentos relativos às atividades do Santo Ofício no Brasil
registra vários casos de bruxas portuguesas. Suas praticas podem ter recebido
influencia africana: em essência, porem, foram expressões do satanismo europeu
que ainda hoje se encontra entre nós, misturado a feitiçaria africana ou
indígena. Antônia Fernandes, de alcunha Nóbrega, dizia-se aliada do diabo: as
consultas, quem respondia por ela era ‘certa cousa que falava, guardada num
vidro’. Magia medieval do mais puro sabor europeu. Outra portuguesa, Isabel
Rodrigues, ou Boca-Torta, fornecia pós miríficos e ensinava orações fortes. A
mais celebre de todas, Maria Gonçalves, de alcunha Arde-lhe-o-rabo ligavam-se
quase todos a problemas de impotência e esterilidade. A clientela dessas
feiticeiras coloniais parece que era quase exclusivamente de amorosos,
infelizes ou insaciáveis.”
Outra figura que era utilizada para amedrontar era o “homem
marinho – terrível devorador de dedos, nariz e piroca de gente”.
“Há o akpalô fazedor de alô ou conto; e há o arokin, que é o
narrador das crônicas do passado. O akpalô é uma instituição africana que
floresceu no Brasil na pessoa de negras velhas que só faziam contar histórias.
Negras que andavam de engenho em engenho contando histórias às outras pretas,
amas dos meninos brancos. José Lins do Rego no seu ‘Menino de Engenho’, fala
das velhas estranhas que apareciam pelos bangüês da Paraiba: contavam histórias
e iam-se embora. Viviam disso. Exatamente a função e o gênero de vida do
akpalô.”
“A linguagem infantil brasileira, e mesmo a portuguesa, tem
um sabor quase africano: Cacá, pipi, bumbum, tentem, neném, tatá, papá, papato,
lili, mimi, au-au, bambanho, cocô, dindinho, bimbinha.”
“As Antônias ficaram Dondons, Toninhas, Totonhas; as
Teresas, Tetés; os Manuéis, Nezinhos, Mandus, Manés; os Franciscos, Chico,
Chiquinho, Chicó; os Pedros, Pepés; os Albertos, Bebetos, Betinhos. Isto sem
falarmos das Iaiás, dos Ioiôs, das Sinhás, das Manus, Calus, Bembens, Dedés,
Marocas, Nocas, Nonocas, Gegês.”
Segue uma das canções que as mulatinhas do engenho cantavam
para os filhos dos senhores:
“Meu branquinho feiticeiro,
Doce ioiô meu irmão,
Adoro teu cativeiro,
Branquinho do coração,
Pois tu chamas de irmãzinha
A tua pobre negrinha
Que estremece de prazer,
E vais pescar à tardinha
Mandi, piau e corvina
Para a negrinha comer.”
“Entre outras, a erva conhecida no Rio de Janeiro – segundo
Manuel Querino – por pungo e por macumba na Bahia; e em Alagoas por maconha. Em
Pernambuco é conhecida por maconha; e também, segundo temos ouvido entre seus
aficionados, por diamba ou liamba. Diz Querino que o uso da macumba foi
proibido pela Camara do Rio de Janeiro em 1830, o vendedor pagaria 20mil de
multa; o escravo que usasse seria condenado a 3 dias de cadeia. Já fumamos a
macumba ou diamba. Produz realmente visões e um como cansaço suave; a impressão
de quem vola cansado dum baile, mas com a musica ainda nos ouvidos. Parece,
entretanto, que seus efeitos variam consideravelmente de individuo para
individuo. Como seu uso se tem generalizado em Pernambuco, a polícia vem
perseguindo com rigor os seus vendedores e consumidores – os quais fumam-na em
cigarros, cachimbos e alguns até a ingerem em chás.”
“Alguns consumidores da planta, hoje cultivada em várias
partes do Brasil, atribuem-lhe virtudes místicas; fuma-se ou ‘queima-se a
planta’ com certas intenções, boas ou más. Segundo Querino, o Dr. J.R. da Costa
Dória atribui-lhe também qualidade afrodisíaca. “
“Os viajantes que aqui estiveram no século XIX são unânimes
em destacar este ridículo da vida brasileira: os meninos, uns homenzinhos à
força desde os nove ou dez anos. Obrigados a se comportarem como gente grande:
o cabelo bem penteado, às vezes frisado à Menino Jesus; o colarinho duro; calça
comprida; roupa preta; botinas pretas; o andar grave; os gestos sisudos; um ar
tristonho de quem acompanha enterro.”
“Os pretos foram os músicos da época colonial e do tempo do
Império.”
“...houve não só banda de música de negros, mas circo de
cavalinhos em que os escravos faziam de palhaços e de acrobatas. Muitos
acrobatas de circo, sangradores, dentistas, barbeiros e até mestres de menino –
tudo isto foram os escravos no Brasil; e não apenas negros de enxada ou de
cozinha.”
“Imagine-se a saudade com que os meninos de engenho,
acostumados a uma vida toda de vadiação – banho de rio, arapuca de apanhar
passarinho, briga de galo, jogo de trunfo na casa de purgar com os negros e os
muleques, chamego com as primas e as negrinhas – deixavam essas delícias para
virem de barcaça ou a cavalo, parando pelo caminho nos engenhos dos parentes e
conhecidos dos pais, estudar nos internatos...”
“Os discípulos dos padres Cardim e Faria ‘sem temor de Deus
nem vergonha dos homens’ andavam o dia inteiro como uns bodes, pulando cercas e
saltando valados, atrás de escravas e de ‘outras mulheres que para esse fim
mandam vir da cidade’.”
“Entre os privilégios negados à gente de cor achava-se o
sacerdócio; por esse motivo grande empenho faziam as famílias de avoengos mais
respeitáveis em ter entre seus membros padres ou religiosos; era uma prova de
pureza de sangue...”
“É curioso observar que Minas Gerais parece ter sempre
tomado a dianteira nos movimentos de democratização social do Brasil, contra os
preconceitos de branquidade e de legitimidade.”
“De modo que talvez fossem melhores os suplícios de que nos
fala o Padre Sequeira: o menino ajoelhado
em caroço de milho durante duas, três, quatro horas; os bolos das várias
palmatórias pedagógicas e domésticas – a pele de cação, a de jacarandá e a
maior para os valentões, de gramari. Em Minas dizem que certo padre do Caraça,
Padre Antunes, ‘amarrava o lenço no braço para ter mais força de puxar a
palmatória’. A pedagogia como a
disciplina patriarcal no Brasil apoiou-se sobre base distintamente sadista.
Resultado, em grande parte, das condições de seu inicio: uma pedagogia e uma
disciplina de vencedores sobre vencidos, de conquistadores sobre conquistados,
de senhores sobre escravos. É um estudo a fazer-se, o das várias formas e
instrumentos de suplícios a que esteve sujeito o menino no Brasil em casa e no
colégio: as várias espécies de palmatórias, a vara de marmelo, às vezes com
alfinete na ponta, o cipó, o galho de goiabeira, o muxicão, o cachação, o
puxavante de orelha, o beliscão simples, o beliscão de frade, o cascudo, o
cocorote , a palmada.”
“Refere Taunay que em muitas fazendas o preparo do arroz,
indispensável nas mesas brasileiras, era delegado a um especialista.”