quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Casa Grande e Senzala – resenha crítica e fichamento

Gilberto Freyre foi um grande sociólogo brasileiro, foi professor universitário e acima de tudo um grande pesquisador da cultura brasileira, do povo brasileiro, de sua miscigenação, da sua gastronomia. Lançou “Casa Grande e Senzala” na década de 1930, e com isso traz reflexões com a percepção da época. O autor revela muitos dados e documentos antigos que nos mostram como éramos (e em muito, continuamos a ser) em nosso comportamento e cultura nacional.
“Casa Grande e Senzala” revela a nossa raiz cultural, como se estruturou a organização social, econômica e a política em nosso país. Revela a nossa dívida histórica para com os povos oprimidos; tanto os indígenas , donos das terras invadidas que resistiram e foram aniquilados, quanto os negros, que foram tirados de sua terra para viver na escravidão.
Nesse livro, Gilberto mostra de forma até hilária nossos antigos costumes, escancara a cultura brasileira, sem esconder nossa tendência ao desbunde. Criamos um modelo capitalista parecido com a Europa, porém menos racional. E é perceptível até nos tempos atuais que o modelo parece “apertado em nossos corpos”. Somos um povo livre por natureza, cheio de vida e emoção  e merecemos um modelo de civilização que respeite nosso povo e cultura.
Além de gênio, Gilberto Freyre é também um homem de seu tempo. Com um olhar crítico é possível absorver da obra muito conhecimento dessa nossa cultura brasileira tão vasta.

Buscando salientar os principais tópicos, segue um breve fichamento do livro:

“Faltou-me quem me dissesse então, como em 1929 Roquette-Pinto aos arianistas do Congresso Brasileiro de Eugenia, que não eram simplesmente mulatos ou cafuzos os indivíduos que eu julgava representarem o Brasil, mas cafuzos e mulatos doentes.”
“Boas salienta o fato de que nas classes de condições econômicas desfavoráveis da vida os indivíduos desenvolverem-se lentamente, apresentando estatura baixa, em comparação com a das classes ricas. Entre as classes pobres encontra-se uma estatura baixa aparentemente hereditária, que, entretanto, parece suscetível de modificar-se, uma vez modificadas as condições de vida econômica. Encontram-se – diz Boas – proporções do corpo determinadas por ocupações, e aparentemente transmitidas de pai a filho, no caso do filho seguir a mesma ocupação que o pai.”
“Na Rússia, devido à fome de 1921 e 1922 – resultado não só da má organização das primeiras administrações soviéticas como do bloqueio da nova república pelos governos capitalistas – verificou-se  considerável  diminuição na estatura da população.”
“Refutando a teoria de Oliveira Viana – a inexistência da luta de classes na formação social do Brasil – lembra Astrojildo Pereira as guerras, os conflitos dos ‘senhores’ com os indígenas e com os negros fugidos (quilombolas) e da própria burguesia nascente com a aristocracia rural já estratificada. Também os conflitos dos representantes da Coroa, quando fortalecidos pelas descobertas das minas, com os caudilhos rurais. Estes, embora atravessando crises e sofrendo depressões de poderio, foram a força preponderante.”
“A índia e a negra-mina a princípio, depois a mulata, a cabrocha, a quadrarona, a oitavona, tornando-se caseiras, concubinas e até esposas legítimas dos senhores brancos, agiram poderosamente no sentido de democratização social no Brasil.”
“Salientam-se entre as conseqüências da hiponutrição a diminuição da estatura, do peso e do perímetro torácico; deformações esqueléticas; descalcificação dos dentes, insuficiências tiróidea, hipofisaria e gonadial provocadoras da velhice prematura, fertilidade em geral pobre, apatia, não raro infecundidade. Exatamente os traços de vida estéril e de físico inferior que geralmente se associam às sub-raças; ao sangue maldito das chamadas ‘raças inferiores’.”
“... o costume dos conventos medievais de tocar-se um sino à hora da comida: ‘serve elle para avisar o viajante vagando pelo campo, ou o desvalido da visinhança, que pode chegar à mesa do dono que está se apromptando; e, com effeito, assenta-se quem quer a essa mesa de hospitalidade. Nunca o dono repelle a ninguém, nem sequer pergunta-se-lhe quem he...”
“Também em Minas. Na tapera de Samangolê, Município de Paracatu, havia até há pouco um baile de noite de São João concorrido por gente de toda parte, que vinha em seges e cadeirinhas, escoltadas de pajens, etc. As orquestras tocavam a noite inteira. Mas ao amanhecer, tudo tinha desaparecido. Ultimamente esse mal assombrado se desencantou. Entre as mais famosas casas velhas mal-assombradas do Brasil está a do Padre Correia (Petrópolis) onde “conta-se que a alma dos veneráveis Correias por ali erravam à noite protestando contra o abandono da propriedade.”
“Aliás, em matéria de domesticação patriarcal de animais, d´Assier observou exemplo ainda mais expressivo: macacos tomando a bênção aos muleques do mesmo modo que estes aos negros velhos e os negros velhos aos senhores brancos. A hierarquia das casas-grandes estendendo-se aos papagaios e aos macacos.”
“O chão de todas as habitações e officinas deve ser levantado acima do terreno visinho: huma mistura de barro, tubatinga, área e bosta de boi applicada e soccada torna-se quase tão dura como ladrilho e serve bem para argamassar tanto os terreiros como os pavimentos.”
“A história social da casa-grande é a história íntima de quase todo brasileiro: de as vida doméstica, conjugal, sob o patriarcalismo escravocrata e polígamo; da sua vida de menino; do seu cristianismo reduzido à religião de família e influenciado pelas crendices da senzala.”
“... uma procissão de negros de Guiné em Pernambuco, organizados em confraria do Rosário, todos muito em ordem ‘uns traz outros com as mãos sempre alevantadas, dizendo todos: Ora pro nobis’.”
“Anchieta lamenta nos nativos, o que Camões já lamentara nos portugueses – ‘a falta de engenhos’, isto é, de inteligência, acrescida do fato de não estudarem com cuidado e de tudo se levar em festas, cantar e folgar; salientando ainda a abundância dos doces e regalos, laranjada, aboborada, marmelada, etc., feitos de açúcar.”
“Com relação ao Brasil, que o diga o ditado: ‘Branca para casar, mulata para f...., negra para trabalhar’.”
“Tais uniões devem ter agido como ‘verdadeiro processo de seleção sexual’, dada liberdade que tinha o europeu de escolher mulher dentre dezenas de índias. De semelhante intercurso sexual só podem ter resultado bons animais, ainda que maus cristãos ou mesmo más pessoas.”
“Através de certas épocas coloniais observou-se a pratica de ir um frade a bordo de todo navio que chegasse a porto brasileiro, a fim de examinar a consciência, a fé, a religião do adventício. O que barrava então o imigrante era a heterodoxia; a mancha de herege na alma e não a mongólica no corpo. Do que se fazia questão era da saúde religiosa: a sífilis, a bouba, a bexiga, a lepra entraram livremente trazidas por europeus e negros de várias procedências.”
“... o  Catolicismo foi realmente o cimento da nossa unidade.”
“A fuga das mulheres era mais difícil; de sorte que o rapto das índias foi largamente praticado pelos pretos quilombolas.”
O filho do senhor de engenho contraía sífilis quase brincando entre negras e mulatas ao perder a virgindade com doze ou treze anos. O brasileiro ostentava a marca de sífilis como quem ostentava uma ferida de guerra.
“Degradados, cristãos-novos, traficantes normandos de madeira de tinta que aqui ficavam, deixados pelos seus para irem se acamaradando com os indígenas; e que acabavam muitas vezes tomando gosto pela vida desregrada no meio de mulher fácil e à sombra de cajueiros e araçazeiros.”
“Não convém, entretanto, esquecer-se o sadismo da mulher, quando grande senhora, sobre os escravos, principalmente sobre as mulatas; com relação a estas, por ciúme ou inveja sexual.”
“À cultura do litoral atlântico – aquela com que primeiro se puseram em contato os europeus no Brasil – devem-se acrescentar os seguintes traços: o hábito de fumar tabaco em cachimbo; as aldeias cercadas de pau-a-pique; bons instrumentos de pedra; em vez do simples enterramento, os mortos colocados em urnas. Ao mesmo tempo que à cultura dos Jê-Botocudo ou Tapuia do Centro há que subtrair vários dos traços mencionados: o pouco de lavoura e tecelagem, o começo da astrologia encontrados entre tribos do norte e da costa, o fabrico e uso de instrumentos de pedra, o uso de rede para dormir. Acentua-se na cultura dos Jê-Botocudo traços que, segundo Wissler, os aproximam dos Patagônios, colocando-os em estádio inferior ao dos Tupi. Entre outros, o canibalismo.”
“... a presença de ‘algumas aves domesticadas como os jacamins; de roedores, tais como a cutia e a paca; e de alguns macacos.’ É verdade que nenhum desses animais a serviço domestico nem empregado no transporte de fardos, todo ele feito penosamente ao dorso do homem e principalmente da mulher.”  Entre os indígenas era quase somente pela companhia.
“Karsten encontrou entre os Jibaro o mito de ter havido época em que os animais falaram e agiram do mesmo modo que os homens. E ainda hoje – acrescenta – ‘o índio não faz distinção definida entre o homem e o animal. Acredita que todos os animais possuem alma, em essência da mesma qualidade que a do ser humano; que intelectual e moralmente seu nível seja o mesmo que o do homem’.”
“... a mulher não se agastava com o fato de o homem, seu companheiro, tomar outra ou outras mulheres.”
“... a elegante rainha Margarida de Navarra passava uma semana inteira sem lavar as mãos;”
“... advertia os jovens da nobreza a não assoarem o  nariz à mesa com a mão que estivesse segurando o pedaço de carne; que em 1530 Erasmo considerava decente assoar-se a pessoa a dedo, uma vez que esfregasse imediatamente com a sola d sapato o catarro que caísse no chão;”
“Dos indígenas parece ter ficado no brasileiro rural ou semi-rural o hábito de defecar longe de casa; em geral no meio de touça de bananeiras perto do rio. E de manhã, antes do banho.”
“O mesmo pesquisador foi encontrar entre os  Pueblos uma dança destinada especialmente a fazer medo aos meninos e incutir-lhes sentimentos de obediência e respeito aos mais velhos. Os personagens da dança eram uns como papões ou terríveis figuras de outro mundo, descidos a este para devorar ou arrebatar meninos maus. Stevenson informa-nos de dança semelhante entre os Zuñi, esta macabra, terminando na morte de uma criança, escolhida dentre as de pior comportamento da tribo: mas realizando-se com intervalos de longos anos. O fim, o moral, o pedagógico, de influir pelo medo ou pelo exemplo do castigo tremendo sobre a conduta do menino.”
Silvanus era o espírito mau da floresta.
“E entre os índios Gaulala, da California, Powers foi encontrar danças do diabo, que comparou às haberfeld treiber da Bavária – instituição para amedrontar as mulheres e as crianças e conservá-las em ordem.”
“Danças semelhantes de ‘diabo’ – ou Jurupari – havia entre os indígenas do Brasil; e com o mesmo fim de amedrontar as mulheres e as crianças e conservá-las em boa ordem.”
“Por uma espécie de memória social, como que herdada, o brasileiro, sobretudo na infância, quando mais instintivo e menos intelectualizado pela educação européia, se sente estranhamente próximo da floresta viva, cheia de animais e monstros, que conhece pelos nomes indígenas e, em grande parte, através das experiências e superstições dos índios.”
“Às vezes os padres procuraram, ou conseguiram, afastar os meninos da cultura nativa, tornando-a ridícula aos seus olhos de catecúmenos: como no caso do feiticeiro referido por Montoya. Conseguiram os missionários que um velho feiticeiro, figura grotesca e troncha, dançasse na presença da meninada: foi um sucesso. Os meninos acharam-no ridículo e perderam o antigo respeito ao bruxo, que daí em diante teve de contentar-se em servir de cozinheiro dos padres.”
“Criminoso ou escravo fugido que se apadrinhasse com senhor de engenho livrava-se na certa das iras da justiça ou da polícia. Mesmo que passasse preso diante da casa grande bastava gritar:  - ‘Valha-me, seu Coronel Fulano.’ E agarrar-se à porteira ou a um dos moirões da cerca. Da mesma maneira que outrora, em Portugal, refugiando-se o criminoso à sombra das igrejas, escapava ao rigor da justiça Del-Rei.”
O Brasil, no início da colonização era somente pau-de-tinta e almas para Jesus Cristo.
“Deixemo-nos de lirismo com relação ao índio. De opô-lo ao português como igual contra igual. Sua substituição pelo negro – mais uma vez acentuemos – não se deu pelos motivos de ordem moral que os indianófilos tanto se deliciam em alegar: sua altivez diante do colonizador luso em contraste com a passividade do negro. O índio, precisamente pela inferioridade de condições de cultura – a nômade, apenas tocadas pelas primeiras e vagas tendências para a estabilização agrícola – é que falhou no trabalho sedentário. O africano executou-o com decidida vantagem sobre o índio principalmente por vir de condições de cultura superiores. Cultura já francamente agrícola. Não foi questão de altivez nem de passividade moral.”
“Cantavam e dançavam as freiras com tal algazarra que o viajante chegou a acreditar que estivessem possuídas de algum espírito zombeteiro. Depois do que representaram uma comédia de amor.”
“Mas outros característicos pagãos do culto de São Gonçalo conservam-se em Portugal. Entre outros, as enfiadas de rosários fálicos fabricados de massa doce e vendidos e ‘apregoados em calão fescenino’ – informa Luís Chaves – pelas doceiras à porta das igrejas. E já nos referimos ao costume das mulheres estéreis de se friccionarem ‘ desnudadas’, pelas pernas da imagem jacente do Bem-Aventurado, enquanto os crentes rezam baixinho e não erguem os olhos para o que não devem ver.’ A fricção sexual dos tempos pagãos acomodada a formas católicas.”
“A maior delícia do brasileiro é conversar safadeza.”
“Um elemento de colonização portuguesa do Brasil, aparentemente puro, mas na verdade corruptor, foram os meninos órfãos trazidos pelos jesuítas para seus colégios. Informa Monteiro que nos ‘livros nefando são citados com relativa freqüência’.”
“ A freqüência da feitiçaria e da magia sexual entre nós é outro traço que passa por ser de origem exclusivamente africana. Entretanto o primeiro volume de documentos relativos às atividades do Santo Ofício no Brasil registra vários casos de bruxas portuguesas. Suas praticas podem ter recebido influencia africana: em essência, porem, foram expressões do satanismo europeu que ainda hoje se encontra entre nós, misturado a feitiçaria africana ou indígena. Antônia Fernandes, de alcunha Nóbrega, dizia-se aliada do diabo: as consultas, quem respondia por ela era ‘certa cousa que falava, guardada num vidro’. Magia medieval do mais puro sabor europeu. Outra portuguesa, Isabel Rodrigues, ou Boca-Torta, fornecia pós miríficos e ensinava orações fortes. A mais celebre de todas, Maria Gonçalves, de alcunha Arde-lhe-o-rabo ligavam-se quase todos a problemas de impotência e esterilidade. A clientela dessas feiticeiras coloniais parece que era quase exclusivamente de amorosos, infelizes ou insaciáveis.”
Outra figura que era utilizada para amedrontar era o “homem marinho – terrível devorador de dedos, nariz e piroca de gente”.
“Há o akpalô fazedor de alô ou conto; e há o arokin, que é o narrador das crônicas do passado. O akpalô é uma instituição africana que floresceu no Brasil na pessoa de negras velhas que só faziam contar histórias. Negras que andavam de engenho em engenho contando histórias às outras pretas, amas dos meninos brancos. José Lins do Rego no seu ‘Menino de Engenho’, fala das velhas estranhas que apareciam pelos bangüês da Paraiba: contavam histórias e iam-se embora. Viviam disso. Exatamente a função e o gênero de vida do akpalô.”
“A linguagem infantil brasileira, e mesmo a portuguesa, tem um sabor quase africano: Cacá, pipi, bumbum, tentem, neném, tatá, papá, papato, lili, mimi, au-au, bambanho, cocô, dindinho, bimbinha.”
“As Antônias ficaram Dondons, Toninhas, Totonhas; as Teresas, Tetés; os Manuéis, Nezinhos, Mandus, Manés; os Franciscos, Chico, Chiquinho, Chicó; os Pedros, Pepés; os Albertos, Bebetos, Betinhos. Isto sem falarmos das Iaiás, dos Ioiôs, das Sinhás, das Manus, Calus, Bembens, Dedés, Marocas, Nocas, Nonocas, Gegês.”
Segue uma das canções que as mulatinhas do engenho cantavam para os filhos dos senhores:
“Meu branquinho feiticeiro,
Doce ioiô meu irmão,
Adoro teu cativeiro,
Branquinho do coração,
Pois tu chamas de irmãzinha
A tua pobre negrinha
Que estremece de prazer,
E vais pescar à tardinha
Mandi, piau e corvina
Para a negrinha comer.”

“Entre outras, a erva conhecida no Rio de Janeiro – segundo Manuel Querino – por pungo e por macumba na Bahia; e em Alagoas por maconha. Em Pernambuco é conhecida por maconha; e também, segundo temos ouvido entre seus aficionados, por diamba ou liamba. Diz Querino que o uso da macumba foi proibido pela Camara do Rio de Janeiro em 1830, o vendedor pagaria 20mil de multa; o escravo que usasse seria condenado a 3 dias de cadeia. Já fumamos a macumba ou diamba. Produz realmente visões e um como cansaço suave; a impressão de quem vola cansado dum baile, mas com a musica ainda nos ouvidos. Parece, entretanto, que seus efeitos variam consideravelmente de individuo para individuo. Como seu uso se tem generalizado em Pernambuco, a polícia vem perseguindo com rigor os seus vendedores e consumidores – os quais fumam-na em cigarros, cachimbos e alguns até a ingerem em chás.”
“Alguns consumidores da planta, hoje cultivada em várias partes do Brasil, atribuem-lhe virtudes místicas; fuma-se ou ‘queima-se a planta’ com certas intenções, boas ou más. Segundo Querino, o Dr. J.R. da Costa Dória atribui-lhe também qualidade afrodisíaca. “
“Os viajantes que aqui estiveram no século XIX são unânimes em destacar este ridículo da vida brasileira: os meninos, uns homenzinhos à força desde os nove ou dez anos. Obrigados a se comportarem como gente grande: o cabelo bem penteado, às vezes frisado à Menino Jesus; o colarinho duro; calça comprida; roupa preta; botinas pretas; o andar grave; os gestos sisudos; um ar tristonho de quem acompanha enterro.”
“Os pretos foram os músicos da época colonial e do tempo do Império.”
“...houve não só banda de música de negros, mas circo de cavalinhos em que os escravos faziam de palhaços e de acrobatas. Muitos acrobatas de circo, sangradores, dentistas, barbeiros e até mestres de menino – tudo isto foram os escravos no Brasil; e não apenas negros de enxada ou de cozinha.”
“Imagine-se a saudade com que os meninos de engenho, acostumados a uma vida toda de vadiação – banho de rio, arapuca de apanhar passarinho, briga de galo, jogo de trunfo na casa de purgar com os negros e os muleques, chamego com as primas e as negrinhas – deixavam essas delícias para virem de barcaça ou a cavalo, parando pelo caminho nos engenhos dos parentes e conhecidos dos pais, estudar nos internatos...”
“Os discípulos dos padres Cardim e Faria ‘sem temor de Deus nem vergonha dos homens’ andavam o dia inteiro como uns bodes, pulando cercas e saltando valados, atrás de escravas e de ‘outras mulheres que para esse fim mandam vir da cidade’.”
“Entre os privilégios negados à gente de cor achava-se o sacerdócio; por esse motivo grande empenho faziam as famílias de avoengos mais respeitáveis em ter entre seus membros padres ou religiosos; era uma prova de pureza de sangue...”
“É curioso observar que Minas Gerais parece ter sempre tomado a dianteira nos movimentos de democratização social do Brasil, contra os preconceitos de branquidade e de legitimidade.”
“De modo que talvez fossem melhores os suplícios de que nos fala o Padre Sequeira:  o menino ajoelhado em caroço de milho durante duas, três, quatro horas; os bolos das várias palmatórias pedagógicas e domésticas – a pele de cação, a de jacarandá e a maior para os valentões, de gramari. Em Minas dizem que certo padre do Caraça, Padre Antunes, ‘amarrava o lenço no braço para ter mais força de puxar a palmatória’. A pedagogia  como a disciplina patriarcal no Brasil apoiou-se sobre base distintamente sadista. Resultado, em grande parte, das condições de seu inicio: uma pedagogia e uma disciplina de vencedores sobre vencidos, de conquistadores sobre conquistados, de senhores sobre escravos. É um estudo a fazer-se, o das várias formas e instrumentos de suplícios a que esteve sujeito o menino no Brasil em casa e no colégio: as várias espécies de palmatórias, a vara de marmelo, às vezes com alfinete na ponta, o cipó, o galho de goiabeira, o muxicão, o cachação, o puxavante de orelha, o beliscão simples, o beliscão de frade, o cascudo, o cocorote , a palmada.”
“Refere Taunay que em muitas fazendas o preparo do arroz, indispensável nas mesas brasileiras, era delegado a um especialista.”



segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Ávido por reciclar

Todo dia é dia de transformação, a vida não é estática e por isso devemos nos permitir mudar, evoluir, pedir perdão. Neilton estava aprendendo a ter ideias novas, quebrando tabus, praticando mais ações de amor ao próximo. Havia momentos de incômodo, de incertezas, de falta de estabilidade espiritual; mas ele percebeu que mudanças não são fáceis, mas são necessárias. Tudo muda, e nós não podemos ficar de fora.
Seus amigos da faculdade, pessoal boa gente, que além de bem informados e inteligentes eram de um coração enorme, não havia dúvidas de que se alguém deveria ser ouvido, eram essas grandes personalidades. Eles eram simpáticos da permacultura, da reciclagem, dos movimentos sociais, do apoio às minorias e marginalizados, eram pessoas do bem. E Neilton aprendeu com eles a realizar a coleta seletiva dos resíduos domésticos, vulgo lixo.
Neilton entendeu que a reciclagem era algo necessário, que o nosso planeta não aguentaria tanto consumismo, tanto plástico, tanto vidro e outros materiais não naturais, que demoram séculos pra se decompor na natureza. Poucos eram os interessados em saber o que ocorria nos aterros sanitários, também conhecidos como lixões. Pra onde vai tanto material? Como é tratado esse material?
No começo é difícil separar todo o lixo, memorizar os dias e lugares certos de deixar o lixo reciclável. Mas com persistência ele foi se acostumando, logo ele se tornou uma pessoa muito preocupada com o processo de reciclagem. Chegava a pregar as boas novas para os amigos que ainda não sabiam ou eram relaxados. Às vezes ele era até chato.

Numa terça feira ele estava em casa e ainda não havia passado o caminhão que recolhia os recicláveis, deveria ter passado no dia anterior e ainda nada. Neilton pensou em ligar para o departamento da prefeitura que era responsável pelo recolhimento, mas na hora deu aquela vontade louca de ir ao banheiro dar uma barrigada. E eis que ele ouve o barulho do outro caminhão, o de lixo comum, se aproximando de sua casa. Sem pensar duas vezes ele começa a gritar: “Espera! Espera!”. Ele percebeu que os funcionários não iriam esperar e saiu correndo atrás, nu, cagado. Deu aquela última limpada com papel higiênico já no corredor, na área externa da casa, enfiou na sacolinha e entregou orgulhoso para o lixeiro que assistiu aquilo tudo chocado. Não se conteve e ainda perguntou: “ainda hoje passa o caminhão dos recicláveis?”

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

O maconheiro e as capivaras

O sol escaldante do centro-oeste castigava Marcelo, estava aliviado que aquela tarde ele não precisaria trabalhar. Aquela horrível rotina de oito, às vezes nove horas de trabalho por dia não era compatível com uma vida tranquila e pacífica. Como podia alguém ter tempo pra trabalhar, se exercitar, comer bem e sem pressa, transar, dormir,  conversar com amigos e companheira, ler e resolver coisas pessoais nessa sociedade capitalista, onde o tempo é dinheiro e a grana está acima de tudo?
Trabalhava como auxiliar de escritório, fizera faculdade por 4 anos para depois ganhar uma miséria, que nunca o deixaria subir de classe social. Estava fadado a ser pobre até a morte. Às vezes até pensava em ser traficante de drogas ou contrabandista de alguma coisa, cogitou ser ladrão de banco também; afinal, Os bancos são grandes colaboradores desse sistema explorador onde apenas 1% da população mundial detém quase 90% da riqueza do planeta. Então se dane os bancos!
O complicado é a luta interna dele com suas ideologias. Ele queria ser honesto, decente, não dever nada pra ninguém, ter a ficha limpa. Então preferia ser pobre, mas honesto, consciência leve. E assim tentava ser feliz com o que podia. Valorizava suas amizades, sua companheira, as experiências simples, a natureza. Final do dia era a hora do baseado. Só alegria. Era um verdadeiro remédio, que acalmava seu corpo e mente. Às vezes ouvia uma boa música, às vezes conversava com alguém. Era sempre uma delícia.
Apesar de polêmica, Marcelo tinha certeza que a planta natural não tinha como lhe prejudicar. Usava com parcimônia, pois tinha a vida muito agitada e não queria misturar as coisas. Ele tinha objetivos e não queria fraquejar na missão. Mas final de semana estava liberado. A fumaceira subia. Bob Marley no som e o sentimento de que tudo esta bem.
E naquela tarde, num desses momentos de luxo, que Marcelo conseguia arranjar na sua rotina, estava ele perto de um lago urbano, mas que possuíam várias capivaras como moradoras. Era um parque arborizado e com muita sombra, para que as pessoas pudessem desfrutar. E numa dessas sombras, Marcelo sentou. Começou a sentir a brisa e a energia positiva de paz que reina na natureza. Que privilégio seria poder desfrutar disso diariamente, realmente em meio à natureza!

Relaxou, e quando já entrava quase em estado de meditação, apareceram umas três capivaras que vinham em sua direção. Ele ficou agradecido por aquele contato com a natureza divina. Logo após apareceram mais três e ele resolveu observar aquelas criaturas. Quando ele meditava sobre o equilíbrio que existe entre a flora e a fauna, uma confusão iniciou-se entre as capivaras. Era uma treta. Coisa horrível, uma querendo dar coices na outra. Não se sabia se era por ciúme, por honra, o fato é que a confusão ocupou grande espaço  e foi em direção ao Marcelo, que teve que sair às pressas da confortável sombra. Baseado no chão, medo e adrenalina nas veias. Parecia confusão de bar. Divina paz natural!

terça-feira, 9 de agosto de 2016

O orgasmo na bicicleta

O desejo pela movimentação, pela atividade física é algo instintivo, um sentimento que nasce dentro de nós como um comichão, que se não for saciado vira tédio, desgosto, depressão.
Carla não podia perder uma tarde ou uma manhã sem ir pedalar, gastar energia. Ela adorava curtir a brisa do dia, sentir o cheiro do café da tarde na casa das pessoas,  o cheiro das flores e plantas no caminho. Uma vez ou outra parar em frente ao mar e poder contemplá-lo. Era sempre uma alegria cada passeio diário.
Carla era tímida, falava pouco, mas possuía um sorriso meigo que cativava a todos. Tinha 25 anos mas parecia ter 17. Era jovial em todos os sentidos. Era destemida frente às aventuras, gostava da natureza e nunca se sentia em perigo quando estava dentro da floresta. Tocava serpentes e aranhas peçonhentas sem medo da morte.
No cotidiano, Carla trabalhava em uma loja de produtos naturais, era discreta ao se vestir e se portar. Adorava ler, pesquisar e trocar idéias cabeça com amigos. Ela namorava um rapaz interessante, filósofo e sociólogo, que vivia o mundo das idéias e também a vida real. Não era um galã de cinema, mas sua compania fazia ela se sentir tranqüila, em paz, amada e segura. Ela não entendia como algumas amigas suas conseguiam namorar homens bonitos, mas vazios por dentro.
Um belo sábado ensolarado e quente, Carlinha saiu pra dar uma volta de bicicleta, como mandava o costume. Muitas vezes ela já tinha sentido uma coceirinha na linguetinha enquanto andava com sua amada bike, mas naquele dia parecia que a sua bicicleta queria deixá-la louca. Algumas trepidações a fizeram suar e foi aí que ela decidiu ir para casa. Era um caminho de quinze minutos, e ela já achava que não iria agüentar. Crianças por toda parte, inocentes nem precebiam o que ocurria com ela. Senhoras idosas aproveitavam a brisa no parque arborizado. E a nossa protagonista daquele jeito. Andou mais um pouco e não resistiu. Gozou, de maneira natural, e era como se voasse. Uma loucura.

Depois houve uma reflexão: havia ela traído seu companheiro com a sua bicicleta? Era isso possível? 

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Vendendo livro para o doidão

Nestor e Alexandre eram amigos, estudavam em um internato evangélico onde cursavam o ensino médio. Eram adolescentes dos seus 16 anos, gostavam de garotas, de esporte, de dar risadas, como a maioria dos adolescentes. Mas naquele ambiente religioso onde moravam e estudavam os dois garotos, não havia espaço para um pensamento livre e de vanguarda. Era costume participar, obrigatoriamente, de dois ou até três cultos diários, com pastores palestrando, músicas da igreja, toda uma lavagem cerebral lastimável. Era ensinado que a masturbação é pecado, e não era permitido contato físico com o namorado. Tinha alguns que até tinham ataques de nervos, tamanha cobrança social.
Porém os protagonistas dessa história entraram na onda evangélica, e decidindo serem fiéis, abandonaram todas as atividades e vícios que a igreja proibia. Nestor queria até ser pastor, já que o final dos tempos estava próximo, e era preciso pregar o evangelho a todos e todas que ainda não tinham conhecimento dele. Tamanha era sua fé, que ele gostaria de entregar sua profissão e sua vida em favor do resgate das almas. Levar a luz da verdade, da bíblia e da igreja.
Todos os anos, tanto nas férias de inverno quanto nas férias de verão, era comum a prática de vender livros de porta em porta, por estudantes que precisavam pagar seus estudos mas não possuíam dinheiro para tal. Os coitados vendiam livros de saúde e de igreja , e pediam valores bem acima da média por suas publicações. Era uma forma de pedir dinheiro e onde o doador  ganhava um livro como gratidão. Para Nestor aquele era o momento de começar a pregar o evangelho, sem distinção de raça, de classe social, de religião. Ele iria pessoalmente levar o chamado divino para cada alma naquela pequena cidade do interior do Paraná.
Alexandre era diferente de Nestor, já era macaco velho, quase perdeu a virgindade aos 13 anos, era malandro, mas também estava levando a sério a religião, namorava uma garota religiosa, que nem deixava ele dar uma encoxadinha, decepção para nosso amigo. Além de nerd, era uma menina conservadora e que nunca deixaria a igreja, por homem nenhum. Alexandre, no auge de sua comungação, desejou ir vender livros em suas férias e ajudar um pouco a obra do senhor. Seria legal essa experiência junto ao seu amigo.
Acabaram-se as aulas e eles foram para a tal cidade do interior paranaense. Gostaram da cidade. Alugaram uma casa por um mês em dez rapazes. Apenas um banheiro. De manhã tinha que sair de casa e achar o primeiro banheiro no comércio local pra dar aquela barrigada. Triste. Mas não se desanimavam, cantavam bem alegres os hinos que os motivavam na sua fé.
Como Nestor já havia feito aquele trabalho, resolveu que iria ensinar como fazer a apresentação dos livros para que Alexandre pudesse aprender e na próxima casa, pudesse realizar a venda. Com a aprovação de Alexandre, ambos foram em direção de uma casa que parecia de classe média. Bateram palmas e esperaram nervosos. Apareceu um homem de cabelo comprido, colete de couro, tatuagem. Tinha uma moto na garagem. Apresentaram-se e pediram um minuto daquele bom homem para apresentar o projeto de vida e saúde que eles traziam.
Entraram na casa, quadros de bandas de rock na parede, um leve cheiro de incenso no ar. Sentaram-se e Nestor começou com a ladainha. Era uma apresentação modelo que os mais velhos no ofício passavam para os novatos. E assim passaram-se cinco minutos. No final, Nestor oferece o primeiro livro, de R$200,00. O homem assustou e disse que não havia condições de ajudar. O rapaz apresentou o segundo livro de R$100,00. Aquele pobre ser começou a transpirar e com ar ofegante começou a repetir: “eu não tenho condições, eu não tenho condições!”. Ele pulou para o terceiro livro de R$50,00 e o homem bufava. Apresentou as revistas de R$20,00 e o homem faltou infartar. Eles não sabiam se aquele homem iria ter um treco, se iria bater neles ou se iria ficar possuído. Como a coisa estava estranha e Nestor não queria deixar uma má impressão naquele estranho ou em Alexandre, o fato foi que Nestor chegou perto do homem e disse que ia fazer uma oração para abençoa-lo. Orou em voz alta enquanto o homem dizia que não tinha condições, com as mãos para o alto quase que dizendo: “sai desse corpo satanás!” E como não saiu, ele e Alexandre se despediram às pressas e correram rumo à rua.

Assim foi a primeira experiência de Alexandre, na obra de deus. Aqueles rapazes, mais tarde saíram da igreja, se tornaram vagabundos, e até hoje se riem desse ocorrido.

domingo, 26 de junho de 2016

O tapa no capacete

Pensamentos revoltosos permeavam sua mente. Uma revolta de quem conheceu uma sociedade em que as pessoas se respeitavam e colaboravam com o coletivo, com a coisa pública. Era difícil para Vangelder ter paciência com os brasileiros, povo miscigenado que não tinha mais que quinhentos anos de história, que ainda buscava criar um modelo de civilização próprio, e que nesse caminho,  se perdeu e já não sabia se queria ser como os europeus, mesmo se orgulhando de ser descendente dos mesmos.
Todavia Vangelder tinha uma missão no sul do Brasil, que era pregar os ideais da civilização europeia e dar o exemplo de como se indignar com a falta de educação daqueles que diziam seguir o caminho do velho mundo. Como podia alguém vestir-se de terno e gravata para cometer estelionato? Isso não cabia na cabeça do nosso velho professor das ruas.
Resolvendo coisas na rua, numa quinta feira de tarde, preocupado com contas altas e escola do filho, começou a atravessar a rua e quase foi atropelado por um motociclista que não respeitou  a faixa de pedestres. Vangelder não pensou duas vezes e meteu a mão no capacete dele, xingando-o com o sotaque belga. “Olha a faixa de pedestres, idiota!”
As senhoras e alguns jovens ficaram estupefatos ante o acontecimento. O motociclista imprudente parou a moto logo mais à frente, tirou o capacete e foi em direção ao Vangelder. Quando percebeu que era um senhor, xingou e disse: “Se o senhor não fosse idoso eu te rachava a cara!” Vangelder não se intimidou e acertou-lhe uma porrada servida no queixo, que fez o motociclista cair no chão.

Vendo aquilo, os jovens já correram pra apartar a briga, que ia ser no mínimo, feia. E assim tivemos o desfecho  de mais uma aventura de nosso herói, que com sua bravura, mostrou à todos os presentes, com quantos paus se fazem uma canoa. Mesmo velho, caído e com a moral baixa, ensinou o povão brasileiro a respeitar as leis de trânsito.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Coca Colas pesadas

No interior do Rio Grande do Sul fazia frio naquela manhã. Cinza. Poucos sorrisos circulavam pela cidade. E Vangelder precisava ir ao supermercado. Haveria naquela manhã, uma festividade em sua casa, com mais 2 casais de amigos.  Pessoal gente boa,  um era colega seu de escritório, o Darci, pessoa interessante,  casado havia 30 anos,  gostava de observar pássaros raros e dormia todo dia às oito da noite. Era tarado, e não conseguia disfarçar. Ele até que tentava, mas sua esposa sempre percebia sua euforia. Pobre Darci. Se olhasse muito pra outra mulher apanhava, e se não olhava, apanhava também.
Reuniu forças e foi à luta. Foi buscar seu alimento. Na verdade não era alimento algum, era 2 litros de coca-cola. Sua esposa fazia questão. A esposa de Vangelder , Marta era uma pessoa muito curiosa também. Era muito verdadeira, não conseguia mentir nem conter suas emoções. Chorava e dizia palavras das quais se arrependia. E a palavra dita é como a flecha lançada. Nessas horas  Vangelder queria se enfiar dentro de um buraco. Marta era apaixonada por ele. Pra ela era como se o marido ainda tivesse seus 40 anos, forte, destemido, dono de si.
No supermercado, que na verdade mais parecia um mercado mesmo, ele entrou ávido para buscar logo aquelas coca colas e sair ligeiro. Era avesso à filas, conglomerados de gente e outras situações que são facilmente evitáveis, mas a boa vontade muitas vezes dá lugar ao egoísmo. E naquele dia havia um único caixa funcionando e uma fila enorme. Tristeza.
Com aqueles dois cascos cheios, um em cada mão, Vangelder entrou na fila. Mas depois de 10 minutos ele não mais aguentou a demora e disse com seu sotaque carregado de Holandês: essas cocas estão ficando pesadas! Disse em alto e bom som para todos ouvirem, sem um pingo de vergonha. Muitos olharam assustados, a boa e velha hipocrisia brasileira estava representada.
Mais 5 minutos se passaram e a fila não parecia andar. A caixa parecia trabalhar mais lento ainda que de costume. Vangelder  soltou uma das garrafas da mão, espatifando-a no chão. Todos olharam dessa vez. E ele avisou: Eu disse que estava ficando pesado, essa aqui está pesando!

A caixa correu o serviço até chegar em Vangelder, que se recusou veemente à pagar aquela coca espatifada. Ameaçou processar e tudo. Estava indignado, aquele era seu protesto contra o sistema. O gerente liberou Vangelder, que saiu mais uma vez satisfeito de ser um professor das ruas.

domingo, 17 de abril de 2016

Esse mestre está de gozação

Ufologia era seu tema preferido. Debruçava-se sobre os livros e pesquisas de grandes estudiosos e observadores do fenômeno OVNI. Era querida por muitos, simpática e bem humorada com todos. Apesar de bem jovem, já tinha se formado em Agroecologia e agora buscava pôr em prática os vários conhecimentos aprendidos até então. Nem mesmo lhe passava pela cabeça continuar na vida acadêmica. Achava um porre ter que aguentar aqueles professores arrogantes querendo comercializar educação, se aproveitando de seus alunos bolsistas, que muitas vezes tinha que pagar pau para seus “superiores” para terem alguma chance nessa tal vida acadêmica, que era mais um espelho da nossa sociedade capitalista e de classes, do que um modelo de sociedade utópica.
Nesse emaranhado de temas alternativos, Vanessa foi criando amizades e evoluindo. Percebia  que haviam varias meninas de sua idade que mesmo querendo evoluir, não conseguiam se desvencilhar das amarras da civilização, do modelo de sistema que nos foi imposto, da educação padronizada, que muitas vezes não se ajustam a nossa maneira de viver e sim à  forma que “eles” querem que sejamos educados, da situação, que apesar de cômoda, é terrível.  Ela se compadecia, conversava, e tentava ajudar, muitas vezes em vão.
Dentre outras leituras que fazia, ela resolveu se aprofundar nos ensinamentos do Mestre Gaia. Ele propagava uma mistura de ensinamentos que mesclava astrologia e teorias sobre energia cósmica e energização de pessoas.  Mestre Gaia era uma personalidade conhecida, era respeitado no meio místico brasileiro. Vestia-se como uma espécie de guru, padre ou coisa parecida. Falava manso, com discursos cheios de argumentação, palavras eruditas.
Vanessa soube do encontro que haveria em uma comunidade alternativa, e durante aquele feriado, haveria confraternização entre místicos, inclusive com a presença ilustre do Mestre Gaia. Ela estava ansiosa para aquele acampamento, convidou amigas e amigos, e fez propaganda com dedicação.
Tudo ocorreu maravilhosamente, refeições vegetarianas deliciosas foram degustadas na companhia de pessoas livres e interessantes, cheias de amor e simpatia pelo próximo. Conversas agradáveis faziam parte do cotidiano daquela reunião,  e muitos assuntos profundos foram discutidos para evolução de todos presentes. Terapias naturais e alternativas eram praticadas nesses dias. Reiki, fitoterapia, rapé, temaskal entre outros tratamentos foram utilizados para o bem estar dos presentes.
De noite haviam encontros na sauna, onde haviam cânticos e massagem coletiva, tudo de maneira pura e iluminada, até que alguns casais resolveram esquentar ainda mais a sauna com chamegos e carícias. A sauna tinha arquitetura diferenciada, era uma bioconstrução, e haviam como umas bancadas que davam uma certa privacidade para quem frequentava o local. Assim, umas das poucas pessoas que visualizou esses casais foi Vanessa, que muito sagaz, sentiu o clima, que a princípio somente maximizava as expressões de amor entre as pessoas.
Naquele mesmo encontro na sauna, depois da sessão de massagem coletiva, Vanessa saiu para banhar-se no rio e sentiu algo gelatinoso nas suas nádegas, deveria ser babosa pensou. Mas não. Era sêmen. E de quem seria? O único homem que chegou perto dela foi o grande Mestre Gaia, que lhe fez uma bela massagem com amor. Confusa  concluiu: aquilo era a porra do mestre! E depois conversando com outras mulheres do acampamento, descobriu que ela não tinha sido a primeira vítima do mestre. Juntas, foram protestar contra o mestre, que com vergonha, pediu desculpas.

Estranha mania do Mestre Gaia, esporrar em suas alunas na bunda no escuro da sauna, sem consentimento delas. Ah, esse Mestre só podia estar de gozação! E que gozação!

domingo, 13 de março de 2016

O Drama do Airbag e da Geladeira

Por um segundo vacilou.  O vendedor perguntou a ele novamente:
- O senhor prefere air bag duplo ou somente um air bag para o motorista?
Aroldo sabia dos perigos que rondam o trânsito, perigos de morte. Mas uma geladeira fixa no painel, ao seu lado, seria magnífico! Poderia carregar sempre uma água gelada e também umas cervejinhas.  Mas e a segurança de Vilma? Ela ficaria sem air bag? Ah! Quem cuida da gente é Deus.
Empresário já conhecido em São Paulo, Aroldo estava em seu terceiro casamento. Teve 3 filhos com cada mulher. Conseguia manter um nível mediano de vida para os filhos. Viveu momentos de riqueza, mas os golpes da vida às vezes são duros.  Então trocou de ramo algumas vezes, chegou a investir num cabaré no centro da cidade, que era movimentado como nenhum escritório do Brasil. Sorrisos masculinos para todos os lados. Bebida e cigarro à revelia. À Aroldo lhe apetecia o ambiente de orgia e boemia. Grande amante dos boleros e perfumes baratos.
Porém Aroldo não era burro, nem tão entregue às paixões. Sabia lidar com a situação, ou pelo menos pensava saber. Esforçava-se em ser bom pai para seus nove herdeiros, mas nem sempre alcançava o êxito.  Falhava na pensão, no tratamento dentário, às vezes no pagamento da mensalidade escolar.  E mais ainda na atenção e carinho, que lhe custavam tempo em sua agenda lotada.  Mas também, com o aumento do uísque e do imposto sobre o carro importado, não há mortal que aguente!
Como esposo, ele era interessado, cuidava delas, dava carinho, mas às vezes a malandragem falava mais alto, e a tentação de se entregar à poligamia lhe era impossível de resistir.  Aroldo era tarado, não tinha jeito. Ficava impressionado com as mulheres.  Lembrava daquela bunda o dia inteiro.
Veio da pobreza, trabalhou muito, teve que aprender a se virar no país da malandragem. Era culpado em parte, mas também era resultado do meio, assim como os políticos e policiais desse país.
Estudou pouco e acreditava que o mundo inteiro era assim, pessoas sem consciência de coletividade, que não conseguem lidar com o egoísmo tornando-se pior que bicho.  Vivendo a regra da selva, onde sobrevive o mais forte. As ruas foram sua escola. Até preso foi. Porque logo ele, deveria seguir as leis num país onde se fazem leis para não as seguir?
Mas Aroldo era destemido, não se dava por derrotado, tinha orgulho de se levantar sempre depois das quedas. Falia, mas voltava a se reerguer. Divorciava, mas se casava novamente. Não desistia do sonho. Era a figura do brasileiro forte, resistente, criativo.  Quiçá consigamos utilizar essa resistência contra o sistema que oprime os mais fracos.
Depois de sair da cadeia, na qual foi preso por não pagar pensão para ex-mulher e filhos, resolveu mudar de vida. Ia montar uma fábrica. E renovar sua imagem no mercado. Numa estratégia de marketing pessoal foi à concessionária comprar um carro novo.  Era uma camioneta bonita e imponente. Daria à ele uma imagem de homem de negócios que ele precisava. E sem pestanejar, com sorriso canalha, respondeu ao vendedor:

- Isso mesmo. Air Bag para o motorista e geladeira no painel.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

O pão mofado

Outro dia desses Vangelder foi ao supermercado. Ele já se preparava psicologicamente, visto o estresse que é frequentar supermercados brasileiros: filas gigantescas, demora do funcionário que fica no caixa, que aliás é um coitado, pois ganha um salário de miséria pra ficar o dia inteiro cuidando da riqueza do patrão e ainda tem que aturá-lo com suas manias de grandeza.
Era verão e o sol brilhava com força no Rio Grande do Sul. Os pássaros cantavam antes da hora, e às oito da manhã o sol já estava rachando mamonas. As pessoas já acordavam suando em suas camas, uns chegavam a desconfiar de alguma goteira nova no quarto. Os mosquitos picavam à reveria, parecia um ataque soviet, as crianças choravam com aquela tortura da cadeia alimentar.
Vangelder acordou cedo, como de costume, tomou seu café com waffle, e lembrou de seus bons tempos de Amsterdam, quando tomava café na beira dos canais, sentindo a brisa leve afagar-lhe o rosto. Seguiu seu destino, caminhou pelas calçadas esburacadas como um malabarista, ouvindo buzinas e xingamentos de trabalhadores que dormem pouco pra dar conta do recado. Que chegam tarde em casa, emputecidos com seu chefe e trabalho mal remunerado, que mal da pra pagar as contas. Tem que lidar com um casamento falido e filhos mal-criados, pois ficam mais na rua e creche que com os pais. Enfim, depois de enfrentar a barbárie das ruas brasileiras, chega no supermercado pra fazer uma pequena compra.
Pessoas circulam e buscam o menor preço. O brasileiro tem esse péssimo costume: ele sempre busca o menor preço. A qualidade fica pra segundo plano. Talvez seja porque tudo por aqui seja de qualidade duvidosa, visto que a cultura da malandragem impera nesse país. Pra tudo se dá um jeitinho. O brasileiro desliza seboso pelas dificuldades e burocracias pra ganhar seu pão, ou mesmo pra enriquecer em terras tupiniquins. Talvez um dia ele perceba que é preciso abandonar esse "jeitinho" pra poder ter mais qualidade de vida, mais saúde, mais paz. Não podemos aceitar produtos sem qualidade nas prateleiras, muito menos em nossas casas, na mesa dos nossos filhos. Se boicotarmos os produtos sem qualidade, todos se esforçarão para produzir produtos com maior qualidade para poder vender.
No supermercado, nosso protagonista escolhe seu café, farinha, e dentre outras coisas o pão de forma. Satisfeito com suas escolhas ele segue para o caixa, enfrenta uma fila de 15 minutos e depois de pagar vai pra casa. Chegando em sua residência, Vangelder retira os produtos da sacola e um a um vai colocando na despensa. Com assombro, percebe que o pão que acabara de comprar esta mofado, e para sua surpresa, ainda está dentro do prazo de validade. A indignação toma conta de Vangelder, que mais do que depressa corre de volta ao supermercado.
Chegando ao destino, ele pede pela presença do gerente, ao qual explica a situação. O gerente pede a nota fiscal e com desconfiança autoriza o gringo a trocar seu produto. Trocado o pão, segue pra casa um pouco nervoso pela situação. Em seu lar, pra sua revolta, percebe que esse novo pão está mofado também. Pé na estrada novamente. 
Dessa vez ele não estava para brincadeiras. Foi decidido a fazer justiça com as próprias mãos. Afinal, estavam fazendo ele de palhaço, não era possível.
Aos brados ele entra no supermercado e para terror dos funcionários e do dono ele dirige-se à gôndola dos pães e repete incessantemente com sotaque estrangeiro: estragado, estragado, estragado! E enquanto berra, sai derrubando todos os pães no chão, e como não bastasse chacoalha a gôndola como a mulher gorila chacoalha sua jaula, no circo de horrores. Os clientes ficam horrorizados, alguns se deliciam em seu íntimo com a cena.
Ao final da história, depois de muito estresse, muita conversinha e muito escândalo, Vangelder sai com um pão novo em folha debaixo do braço, mais uma vez satisfeito e com a boa sensação de um velho e bom educador das ruas.